domingo, 2 de maio de 2010

2) Preparativos

Desde o início de junho, ou dezembro, à medida que se aproximava a data do Solstício*, o Povo Mágico – especialmente os duendes, os gnomos e as fadas – ficava cada vez mais atarefado. Levantando cabanas e tendas para acomodar o pessoal, providenciando para que a água corresse em abundância nos riachos e cachoeiras ao redor, afofando as terras, lavorando meticulosamente nas plantações de legumes, verduras e frutas; numa azáfama contagiante, esses seres encantados iam deixando tudo muito arrumado e agradável, garantindo, desse modo, o sucesso do encontro.
Pequenos e laboriosos animais, como coelhos, esquilos, castores, abelhas e formigas, também entravam na “dança” – pois o trabalho era o prenúncio da festa que estava por vir. Tudo transcorrendo num clima de muita alegria.
Às vezes, depois de ouvirem alguma coisa bem engraçada dita por algum elfo – seres muito espirituosos! –, os coelhos eram vistos rolando-se de rir. Outros, que contribuíam bastante para o alto astral da ocasião, eram os cachorros: seguindo a sua tradição de fazerem coisas divertidíssimas para deixar todo mundo feliz!
Coisas como: correr sem parar, e rapidamente, atrás do próprio rabo, até quase não se enxergar o cachorro, e muito menos o rabo – só um círculo rodopiante de pêlos e baba; coçar as orelhas com as patas – um ato sempre muito esperado e que fazia as crianças chorarem de rir, pois, não demorava muito... alguém resolvia imitá-los... Sendo que o máximo que o imitador conseguia era dar um bom nó nos braços e nas pernas, e ficar com cara de pateta! (Aliás, você já tentou?)

Em geral, as comidas ficavam por conta das gnomas e das salamandras; não sendo incomum ver, as últimas, surgirem com raras e fantásticas receitas do plano astral.
As aranhas dos arredores, por sua vez, teciam cortinas tão leves e etéreas, de intrincados arabescos ou preciosos bordados, para enfeites de salas, tendas e barracas, que, ao final das festividades, acabavam infalivelmente recebendo convites para tecer em lugares longínquos, e até desconhecidos. Algumas voltavam trazendo na bagagem intrigantes histórias sobre povos exóticos e costumes singulares; com muito mais experiência, e cheias de idéias, cores e pontos para as suas tecelagens.

Esse, por sinal, foi o caso de Martha, a Grande Mestra das Aranhas. Após ter vivido certo tempo na Corte do Rei Salomão, chegou tão sábia, que tecia em aramaico e bordava em babilônico ou etrusco antigo; tendo, inclusive, passado para suas teias boa parte das obras da Biblioteca de Alexandria, ainda antes do incêndio – graças aos bons deuses! – e, com isso, ajudado a preservar boa parte daquele patrimônio da Humanidade.
Outra história, que tornou-se muito popular entre o Povo Mágico, foi a de Aracne – uma aranha toda branca, de uma espécie raríssima –, aceita por Miguel Angelo como estagiária; tendo por lá permanecido muitos anos. Suas teias são verdadeiras obras primas, reconhecidas universalmente.
E, porque esses relatos terminaram se propagando mundo afora, sabe-se que, durante as festividades, muito jovens pintores acorrem, de todas as partes, em busca do saber de Martha e Aracne. E que elas, de muito boa vontade, aceitam-nos como discípulos; compreendendo que, dessa forma, estarão lhes ajudando a tecer um belo futuro.

*- No Hemisfério Sul: Solstício de Inverno – por volta de 23 de junho; Solstício de Verão – por volta de 23 de dezembro. No Hemisfério Norte, exatamente ao contrário. É uma data móvel, podendo ter uma pequena variação de um ou dois dias, de ano para ano. Você pode ainda consultar um calendário.

3) O grande encontro

Entre o início e o final, essas festas acabavam tendo a duração aproximada de nove dias: três, para as chegadas e acomodações; outros três, de festividade propriamente dita; e mais três, para as partidas.

No momento em que o primeiro convidado aparecia – vindo de qualquer canto desse Universo –, considerava-se a festa iniciada. Festa que era também um momento para boas reflexões, pois, como ninguém, os bruxos sabiam que uma coisa, para ser séria, não precisa deixar de ser alegre.

Lá pelo segundo dia, boa parte dos convidados já estava presente, e, enquanto aguardavam os que estavam por vir, iam-se reunindo em rodas de gostosas conversas. As surpresas iam despontando pelos ares ou “brotando” da terra.
- Olha, não é Cassandra que vem ali? – perguntava Yolanda, a Gnoma Chefe das Cozinheiras, limpando as mãos no avental; muito feliz por ver a amiga, que naquele momento fazia a vassoura pousar suavemente.
- Nossa! E quem é o louco que vem mais atrás? – e um ziguezague desvairado, seguido de acrobacias aéreas, irrompidas por cima das cabeças, não deixava dúvidas... – Abaixem-se todos! CUIDAAADOOO! – alertava Mago Gregório – Ah! Só podia ser você, Charlie! Quando é que vai crescer?
E todos se preparavam para a aterrissagem do duende Charlie, que, eternamente adolescente e irreverente, não perdia ocasião para uma boa brincadeira.
Enquanto outro grupo pacientemente esperava para ver, em quem, a fumacinha verde com estrelinhas douradas, que saia de uma fogueira, iria se materializar.

A primeira coisa que a maioria dos convidados fazia era abraçar Bercimella, e a segunda – se sua natureza o permitisse –, era banhar-se no Rio; começando, assim, a aproveitar as delícias oferecidas pela casa da amiga.
Nas noites, já desde a primeira, via-se, por todo o lado, pessoas dançando, trocando conhecimentos de suma importância, ou apreciando as esplêndidas refeições oferecidas.

Por falar nisso, uma diversão à parte era o Concurso de Culinária, no qual grande parte dos presentes – excelentes cozinheiros! – participava. A Arte Culinária, como se sabe desde os tempos mais remotos, se confunde com a antiga Arte da Alquimia. E não há bruxo que não adore cozinhar!...
Ano a ano, novos e extraordinários pratos eram apresentados para deleite geral; embora o público sempre pedisse que os tradicionais pratos da culinária bruxa – especialidades de grandes chefs deste e de outros planetas – fossem servidos pelo menos uma vez.

No Concurso, havia a parte das bebidas. Cada uma, mais espetacular! Prateadas e fugazes como o orvalho, verdes quais campos de arroz, douradas como manhãs de férias, de-todas-as-cores-do-arco-íris, cor de suculento pote de mel... (que, de fato, era um pote mel deixado ali por acaso, mas que nem por isso deixou de ser apreciado até a última gota), ou da cor do Sol de outono. Seus efeitos? Aquela, curaria para sempre qualquer ataque de gau-gau-fobia; a outra, faria você entender a língua dos canários; com uma terceira, caberia em qualquer sapato. E, olhando para dentro de certas garrafas, poderia ver até as condições atmosféricas da terra ou do mar; o que, cá pra nós, facilitava em muito o pouso de vassouras em socorros ou emergências.
Preparadas habitualmente com grãos, ervas, ou frutas da melhor qualidade, nunca se soube de alguma que tivesse feito mal a alguém. Exceto... bem... exceto daquela vez em que o duende Charlie quase se engasgou... com a rolha.

Além do Concurso de Culinária, concorria-se também na Prova de Feitiços e Poções.
E... a bem da verdade... é bom lembrar que ser juiz nesse Concurso, de tão exímios quanto peculiares mestres-cucas, era tão apetitoso... quanto perigoso!

4) Tem sempre um chato para estragar a festa!...

Acima de tudo, os encontros dos Solstícios eram grandes rituais, nos quais se comemorava e fortalecia a integração que existia – e que deveria sempre existir – entre todos os seres do Universo. Um lembrete particularmente importante para os – “às vezes meio esquecidos” – seres humanos.

Por falar nisso, em meio aos reencontros, e enquanto os bruxos retomavam velhos papos, dessa vez, como nuvem escura pairando em tarde de piquenique no campo e ameaçando estragar a festa, um tema foi se alastrando, tomando conta das pequenas rodas que iam se formando pelo pátio da casa ou no campo:

- Isso nunca aconteceu antes! Os soldados raramente ultrapassavam os muros do castelo... – assegurava Gregório Hypólito, em sua forma de Grilo, a um pequeno grupo que acabara de se formar em torno de uma macieira.
- E as cercas... vocês viram as cercas? Perto do Rio Doce fizeram até uma paliçada – rolando de cima de uma pequena moita, entrou aflito na conversa o Esquilo Benildo.
- De fato – chegando-se para a roda, confirmou Dom Gastão –, anteontem tive que pular para baixo de uma samambaia, para não ser atropelado por um grupo de soldados de Galáctico, que andava pela Floresta com outros soldados esquisitos que nunca vi por essas bandas. E estavam perto do Sultério!
- Do Sultério Sagrado? – chegando naquele instante, espantou-se Carmenilla, uma bruxa de olhar divertido e curioso, muito amiga de Bercimella.

É bom sempre lembrar que, entre o Povo Mágico e o Reino – o castelo do Rei, com a aldeia que o circunda –, sempre houve muito respeito e entendimento; até porque, o antigo Rei – Dromelindo II – não era exatamente um leigo nas Artes Mágicas...
Mas agora, era tempo do novo Rei – Galáctico I –, e este, bem... este vivia mais para si e para a sua vaidade... E tampouco tivera a sabedoria do pai quanto à escolha de seu Conselheiro...

- É verdade. Não é muito comum os soldados aparecerem por aqui. Em geral, só dão as caras quando estão precisando de ajuda para resolver algum problema... amoroso, na maior parte das vezes. Aliás, nunca entendi porque esse é o mal que mais os aflige... – com uma voz tão clara que parecia iluminar o mundo, falou Beldroega, a bruxa de cabelos verdes, tão magra quanto um tronco de goiabeira jovem; famosa por sua rede de lojas de ervas e feitiços, já espalhadas por vários reinos.
- Talvez porque esse seja um dos problemas mais complicados... – brincou Dom Gastão, um romântico incorrigível.
- No entanto, sempre tiveram muita consideração, quando não... um pouco de temor... – caçoou, irônico, o Grilo.

Dessa feita, porém, por tudo o que se ouvira, os soldados do Rei, além de andarem imperturbáveis por lugares sagrados, e até proibidos para não-bruxos, faziam-se acompanhar por uns tipos bem estranhos... que falavam uma língua muito mais enrolada que a dos caracóis irlandeses!

- E quanto ao Vento? Já faz alguns dias que ele sopra do Leste... será Fasintás? – inquiriu Carmenilla, enquanto suas orelhas iam adquirindo um tom de azul índigo e ficavam ainda mais pontiagudas que de costume; uma coisa comum, todas as vezes que a bruxa ficava preocupada ou apreensiva.

Bercimella – que naquele exato minuto postava-se à frente do grupo, ainda lambendo a cobertura de chocolate do delicioso bolo de cenoura que grudara nos seus dedos – foi quem respondeu:

- Sim, é Fasintás. Veio com a Lua Nova, parece que dessa vez é prá valer... – e, sem se abalar, piscou o olho esquerdo, como se falasse de cores de sombrinhas.
- Não, você não está falando da... – Carmenilla sentiu-se sufocar.

E Cassandra, de cabelos brancos como a neve, e que só falava quando o que tivesse a dizer fosse absolutamente essencial, com uma voz que soava como se viesse de um poço muito profundo, distante como um eco, recordou: – Há muito tempo ouvi meus avós e os bruxos mais antigos afirmarem que o Tempo da Meia Volta seria precedido por margaridas negras e pombas cor-de-maravilha voando de costas. Diziam que esse Tempo traria muitas e proveitosas mudanças para a vida das pessoas. Justamente, por esses dias, num vôo de rotina por cima do Penhasco das Andorinhas, eu tive que desviar de duas pombas cor-de-maravilha que voavam de costas... E, vindo para cá – completou –, tenho certeza de ter enxergado, entre os dendoendros do bosque, uma grande margarida negra – e tomou um bom gole do chá de jasmim que trazia em suas compridas mãos.

- É que a Vida, queridos amigos – seguiu dali Bercimella –, é feita de tempos bons e tempos ruins que vão se alternando. Nem sempre aquele, que parece ser um tempo ruim, o é de fato; ele pode significar apenas uma mudança; e, mudança, deixa tudo de pernas para o ar...
- Quer dizer então, que, para que tudo volte ao normal... com os soldados e seus amigos de volta para dentro dos muros do castelo... para que isto aconteça... teremos que agüentar uma certa bagunça por aqui? – resumiu o assunto, o esperto Benildo, saindo de dentro da toca de um tatu, com uma palha de milho na cabeça.
- ...mas parece que bagunça não é uma coisa que você desconheça, não é mesmo?... – provocou Bercimella, divertindo-se com a cena, e fazendo brilhar e crescer, um pouquinho, o olho azul.
- Me digam uma coisa: o Tempo da Meia Volta não seria precedido por Cachorros do Sol?... pois olhem para cima, meus amigos... – anunciou Mago Gregório, assumindo a forma humana e esguia, dentro de um traje de marajá indiano, com turbante azul e sapatos dourados de bicos de ponta.

O que fez todos olharem para o céu e verem... o maior e mais fantástico Cachorro do Sol – que é um arco-íris na forma de anel em torno do Sol... como um cachorro em volta do dono... – de todos os tempos! As sete cores estavam todas lá: vivas e vibrantes; movendo-se lentamente, numa dança que parecia ser eterna. (Por falar nisso, você já viu algum?)

- Para o nosso Povo – ouviu-se o Cacique Pena de Águia, que vinha chegando naquele momento com seus bravos guerreiros das tribos do Norte –, o Cachorro do Sol é um sinal de mudança, sim. Sinal de que um mundo de paz e harmonia está chegando.
- Há muitas luas esperamos por este sinal – declarou Alma de Corça, a chefe do clã da Lua Azul, um dos mais respeitados, por sua capacidade de prever acontecimentos e realizar curas. – E agora, ele é visto seguidamente pelos céus.
- Já esse negócio de pombas voando de costas... – rindo, e em tom de troça, surgiu Urso Branco, o Grande Pajé. – Bem... vocês bruxos têm cada coisa...
- Tenho certeza de ter visto pombas voando de costas... – confirmou, brandamente, Cassandra.
- E quanto à margarida negra, acredito mesmo que ela a tenha visto. Até porque, estou de testemunha: antes de sair de casa, não tomamos nada mais do que a velha Poção Mágica Para Todos Os Efeitos... – arrematou Carmenilla, acompanhando a galhofa, e fazendo com que todos caíssem na gargalhada.

Uma das coisas que os bruxos aprendiam desde cedo era: manter o bom humor. Sabiam que não adiantava se preocupar com algo que ainda não tinha tomado forma; e que a preocupação, nesses casos, não passava de uma forma de ansiedade; portanto, algo totalmente inútil – que significava tão somente a perda de uma preciosa energia que poderia ser muito melhor aproveitada mais tarde.
- De fato, tudo leva a crer que a antiga Profecia está para se realizar – num tom que não deixava dúvidas quanto à gravidade da questão, falou Bercimella, pegando o grupo de surpresa. – Por isso, a primeira providência a ser tomada é: – e bateu duas vezes com a varinha de condão no pequeno pires azul que sustentava a xícara de chá de Cassandra – Chá de jasmim!

Mal terminou a frase, treze lindos pares de xícaras de chá com seus pires, nas mais lindas cores, surgiram na Floresta, flutuando em fila indiana, até chegarem às mãos de cada um dos presentes, naquela pequena roda de amigos. Uma chaleira, correndo atrás, apressada e esbaforida, foi servindo, naquelas, um fumegante líquido cor de prata.
E um açucareiro, escoltando-a, ia espargindo açúcar, como quem esparge confete em dia de festa.

- Quer saber? Aposto que tudo é coisa de Tresloucado, abobalhado!... – declarou Dom Gastão, saindo de cena em três pulos: um pequenino, um normal e um gigante.

Dali em diante, com a tensão já relaxada, dedicaram-se finalmente ao que mais adoravam: às danças! E, até de manhãzinha, a clareira foi só animação, com os bailarinos se esbaldando ao som do roqüanrol!