domingo, 2 de maio de 2010

2) Preparativos

Desde o início de junho, ou dezembro, à medida que se aproximava a data do Solstício*, o Povo Mágico – especialmente os duendes, os gnomos e as fadas – ficava cada vez mais atarefado. Levantando cabanas e tendas para acomodar o pessoal, providenciando para que a água corresse em abundância nos riachos e cachoeiras ao redor, afofando as terras, lavorando meticulosamente nas plantações de legumes, verduras e frutas; numa azáfama contagiante, esses seres encantados iam deixando tudo muito arrumado e agradável, garantindo, desse modo, o sucesso do encontro.
Pequenos e laboriosos animais, como coelhos, esquilos, castores, abelhas e formigas, também entravam na “dança” – pois o trabalho era o prenúncio da festa que estava por vir. Tudo transcorrendo num clima de muita alegria.
Às vezes, depois de ouvirem alguma coisa bem engraçada dita por algum elfo – seres muito espirituosos! –, os coelhos eram vistos rolando-se de rir. Outros, que contribuíam bastante para o alto astral da ocasião, eram os cachorros: seguindo a sua tradição de fazerem coisas divertidíssimas para deixar todo mundo feliz!
Coisas como: correr sem parar, e rapidamente, atrás do próprio rabo, até quase não se enxergar o cachorro, e muito menos o rabo – só um círculo rodopiante de pêlos e baba; coçar as orelhas com as patas – um ato sempre muito esperado e que fazia as crianças chorarem de rir, pois, não demorava muito... alguém resolvia imitá-los... Sendo que o máximo que o imitador conseguia era dar um bom nó nos braços e nas pernas, e ficar com cara de pateta! (Aliás, você já tentou?)

Em geral, as comidas ficavam por conta das gnomas e das salamandras; não sendo incomum ver, as últimas, surgirem com raras e fantásticas receitas do plano astral.
As aranhas dos arredores, por sua vez, teciam cortinas tão leves e etéreas, de intrincados arabescos ou preciosos bordados, para enfeites de salas, tendas e barracas, que, ao final das festividades, acabavam infalivelmente recebendo convites para tecer em lugares longínquos, e até desconhecidos. Algumas voltavam trazendo na bagagem intrigantes histórias sobre povos exóticos e costumes singulares; com muito mais experiência, e cheias de idéias, cores e pontos para as suas tecelagens.

Esse, por sinal, foi o caso de Martha, a Grande Mestra das Aranhas. Após ter vivido certo tempo na Corte do Rei Salomão, chegou tão sábia, que tecia em aramaico e bordava em babilônico ou etrusco antigo; tendo, inclusive, passado para suas teias boa parte das obras da Biblioteca de Alexandria, ainda antes do incêndio – graças aos bons deuses! – e, com isso, ajudado a preservar boa parte daquele patrimônio da Humanidade.
Outra história, que tornou-se muito popular entre o Povo Mágico, foi a de Aracne – uma aranha toda branca, de uma espécie raríssima –, aceita por Miguel Angelo como estagiária; tendo por lá permanecido muitos anos. Suas teias são verdadeiras obras primas, reconhecidas universalmente.
E, porque esses relatos terminaram se propagando mundo afora, sabe-se que, durante as festividades, muito jovens pintores acorrem, de todas as partes, em busca do saber de Martha e Aracne. E que elas, de muito boa vontade, aceitam-nos como discípulos; compreendendo que, dessa forma, estarão lhes ajudando a tecer um belo futuro.

*- No Hemisfério Sul: Solstício de Inverno – por volta de 23 de junho; Solstício de Verão – por volta de 23 de dezembro. No Hemisfério Norte, exatamente ao contrário. É uma data móvel, podendo ter uma pequena variação de um ou dois dias, de ano para ano. Você pode ainda consultar um calendário.

3) O grande encontro

Entre o início e o final, essas festas acabavam tendo a duração aproximada de nove dias: três, para as chegadas e acomodações; outros três, de festividade propriamente dita; e mais três, para as partidas.

No momento em que o primeiro convidado aparecia – vindo de qualquer canto desse Universo –, considerava-se a festa iniciada. Festa que era também um momento para boas reflexões, pois, como ninguém, os bruxos sabiam que uma coisa, para ser séria, não precisa deixar de ser alegre.

Lá pelo segundo dia, boa parte dos convidados já estava presente, e, enquanto aguardavam os que estavam por vir, iam-se reunindo em rodas de gostosas conversas. As surpresas iam despontando pelos ares ou “brotando” da terra.
- Olha, não é Cassandra que vem ali? – perguntava Yolanda, a Gnoma Chefe das Cozinheiras, limpando as mãos no avental; muito feliz por ver a amiga, que naquele momento fazia a vassoura pousar suavemente.
- Nossa! E quem é o louco que vem mais atrás? – e um ziguezague desvairado, seguido de acrobacias aéreas, irrompidas por cima das cabeças, não deixava dúvidas... – Abaixem-se todos! CUIDAAADOOO! – alertava Mago Gregório – Ah! Só podia ser você, Charlie! Quando é que vai crescer?
E todos se preparavam para a aterrissagem do duende Charlie, que, eternamente adolescente e irreverente, não perdia ocasião para uma boa brincadeira.
Enquanto outro grupo pacientemente esperava para ver, em quem, a fumacinha verde com estrelinhas douradas, que saia de uma fogueira, iria se materializar.

A primeira coisa que a maioria dos convidados fazia era abraçar Bercimella, e a segunda – se sua natureza o permitisse –, era banhar-se no Rio; começando, assim, a aproveitar as delícias oferecidas pela casa da amiga.
Nas noites, já desde a primeira, via-se, por todo o lado, pessoas dançando, trocando conhecimentos de suma importância, ou apreciando as esplêndidas refeições oferecidas.

Por falar nisso, uma diversão à parte era o Concurso de Culinária, no qual grande parte dos presentes – excelentes cozinheiros! – participava. A Arte Culinária, como se sabe desde os tempos mais remotos, se confunde com a antiga Arte da Alquimia. E não há bruxo que não adore cozinhar!...
Ano a ano, novos e extraordinários pratos eram apresentados para deleite geral; embora o público sempre pedisse que os tradicionais pratos da culinária bruxa – especialidades de grandes chefs deste e de outros planetas – fossem servidos pelo menos uma vez.

No Concurso, havia a parte das bebidas. Cada uma, mais espetacular! Prateadas e fugazes como o orvalho, verdes quais campos de arroz, douradas como manhãs de férias, de-todas-as-cores-do-arco-íris, cor de suculento pote de mel... (que, de fato, era um pote mel deixado ali por acaso, mas que nem por isso deixou de ser apreciado até a última gota), ou da cor do Sol de outono. Seus efeitos? Aquela, curaria para sempre qualquer ataque de gau-gau-fobia; a outra, faria você entender a língua dos canários; com uma terceira, caberia em qualquer sapato. E, olhando para dentro de certas garrafas, poderia ver até as condições atmosféricas da terra ou do mar; o que, cá pra nós, facilitava em muito o pouso de vassouras em socorros ou emergências.
Preparadas habitualmente com grãos, ervas, ou frutas da melhor qualidade, nunca se soube de alguma que tivesse feito mal a alguém. Exceto... bem... exceto daquela vez em que o duende Charlie quase se engasgou... com a rolha.

Além do Concurso de Culinária, concorria-se também na Prova de Feitiços e Poções.
E... a bem da verdade... é bom lembrar que ser juiz nesse Concurso, de tão exímios quanto peculiares mestres-cucas, era tão apetitoso... quanto perigoso!

4) Tem sempre um chato para estragar a festa!...

Acima de tudo, os encontros dos Solstícios eram grandes rituais, nos quais se comemorava e fortalecia a integração que existia – e que deveria sempre existir – entre todos os seres do Universo. Um lembrete particularmente importante para os – “às vezes meio esquecidos” – seres humanos.

Por falar nisso, em meio aos reencontros, e enquanto os bruxos retomavam velhos papos, dessa vez, como nuvem escura pairando em tarde de piquenique no campo e ameaçando estragar a festa, um tema foi se alastrando, tomando conta das pequenas rodas que iam se formando pelo pátio da casa ou no campo:

- Isso nunca aconteceu antes! Os soldados raramente ultrapassavam os muros do castelo... – assegurava Gregório Hypólito, em sua forma de Grilo, a um pequeno grupo que acabara de se formar em torno de uma macieira.
- E as cercas... vocês viram as cercas? Perto do Rio Doce fizeram até uma paliçada – rolando de cima de uma pequena moita, entrou aflito na conversa o Esquilo Benildo.
- De fato – chegando-se para a roda, confirmou Dom Gastão –, anteontem tive que pular para baixo de uma samambaia, para não ser atropelado por um grupo de soldados de Galáctico, que andava pela Floresta com outros soldados esquisitos que nunca vi por essas bandas. E estavam perto do Sultério!
- Do Sultério Sagrado? – chegando naquele instante, espantou-se Carmenilla, uma bruxa de olhar divertido e curioso, muito amiga de Bercimella.

É bom sempre lembrar que, entre o Povo Mágico e o Reino – o castelo do Rei, com a aldeia que o circunda –, sempre houve muito respeito e entendimento; até porque, o antigo Rei – Dromelindo II – não era exatamente um leigo nas Artes Mágicas...
Mas agora, era tempo do novo Rei – Galáctico I –, e este, bem... este vivia mais para si e para a sua vaidade... E tampouco tivera a sabedoria do pai quanto à escolha de seu Conselheiro...

- É verdade. Não é muito comum os soldados aparecerem por aqui. Em geral, só dão as caras quando estão precisando de ajuda para resolver algum problema... amoroso, na maior parte das vezes. Aliás, nunca entendi porque esse é o mal que mais os aflige... – com uma voz tão clara que parecia iluminar o mundo, falou Beldroega, a bruxa de cabelos verdes, tão magra quanto um tronco de goiabeira jovem; famosa por sua rede de lojas de ervas e feitiços, já espalhadas por vários reinos.
- Talvez porque esse seja um dos problemas mais complicados... – brincou Dom Gastão, um romântico incorrigível.
- No entanto, sempre tiveram muita consideração, quando não... um pouco de temor... – caçoou, irônico, o Grilo.

Dessa feita, porém, por tudo o que se ouvira, os soldados do Rei, além de andarem imperturbáveis por lugares sagrados, e até proibidos para não-bruxos, faziam-se acompanhar por uns tipos bem estranhos... que falavam uma língua muito mais enrolada que a dos caracóis irlandeses!

- E quanto ao Vento? Já faz alguns dias que ele sopra do Leste... será Fasintás? – inquiriu Carmenilla, enquanto suas orelhas iam adquirindo um tom de azul índigo e ficavam ainda mais pontiagudas que de costume; uma coisa comum, todas as vezes que a bruxa ficava preocupada ou apreensiva.

Bercimella – que naquele exato minuto postava-se à frente do grupo, ainda lambendo a cobertura de chocolate do delicioso bolo de cenoura que grudara nos seus dedos – foi quem respondeu:

- Sim, é Fasintás. Veio com a Lua Nova, parece que dessa vez é prá valer... – e, sem se abalar, piscou o olho esquerdo, como se falasse de cores de sombrinhas.
- Não, você não está falando da... – Carmenilla sentiu-se sufocar.

E Cassandra, de cabelos brancos como a neve, e que só falava quando o que tivesse a dizer fosse absolutamente essencial, com uma voz que soava como se viesse de um poço muito profundo, distante como um eco, recordou: – Há muito tempo ouvi meus avós e os bruxos mais antigos afirmarem que o Tempo da Meia Volta seria precedido por margaridas negras e pombas cor-de-maravilha voando de costas. Diziam que esse Tempo traria muitas e proveitosas mudanças para a vida das pessoas. Justamente, por esses dias, num vôo de rotina por cima do Penhasco das Andorinhas, eu tive que desviar de duas pombas cor-de-maravilha que voavam de costas... E, vindo para cá – completou –, tenho certeza de ter enxergado, entre os dendoendros do bosque, uma grande margarida negra – e tomou um bom gole do chá de jasmim que trazia em suas compridas mãos.

- É que a Vida, queridos amigos – seguiu dali Bercimella –, é feita de tempos bons e tempos ruins que vão se alternando. Nem sempre aquele, que parece ser um tempo ruim, o é de fato; ele pode significar apenas uma mudança; e, mudança, deixa tudo de pernas para o ar...
- Quer dizer então, que, para que tudo volte ao normal... com os soldados e seus amigos de volta para dentro dos muros do castelo... para que isto aconteça... teremos que agüentar uma certa bagunça por aqui? – resumiu o assunto, o esperto Benildo, saindo de dentro da toca de um tatu, com uma palha de milho na cabeça.
- ...mas parece que bagunça não é uma coisa que você desconheça, não é mesmo?... – provocou Bercimella, divertindo-se com a cena, e fazendo brilhar e crescer, um pouquinho, o olho azul.
- Me digam uma coisa: o Tempo da Meia Volta não seria precedido por Cachorros do Sol?... pois olhem para cima, meus amigos... – anunciou Mago Gregório, assumindo a forma humana e esguia, dentro de um traje de marajá indiano, com turbante azul e sapatos dourados de bicos de ponta.

O que fez todos olharem para o céu e verem... o maior e mais fantástico Cachorro do Sol – que é um arco-íris na forma de anel em torno do Sol... como um cachorro em volta do dono... – de todos os tempos! As sete cores estavam todas lá: vivas e vibrantes; movendo-se lentamente, numa dança que parecia ser eterna. (Por falar nisso, você já viu algum?)

- Para o nosso Povo – ouviu-se o Cacique Pena de Águia, que vinha chegando naquele momento com seus bravos guerreiros das tribos do Norte –, o Cachorro do Sol é um sinal de mudança, sim. Sinal de que um mundo de paz e harmonia está chegando.
- Há muitas luas esperamos por este sinal – declarou Alma de Corça, a chefe do clã da Lua Azul, um dos mais respeitados, por sua capacidade de prever acontecimentos e realizar curas. – E agora, ele é visto seguidamente pelos céus.
- Já esse negócio de pombas voando de costas... – rindo, e em tom de troça, surgiu Urso Branco, o Grande Pajé. – Bem... vocês bruxos têm cada coisa...
- Tenho certeza de ter visto pombas voando de costas... – confirmou, brandamente, Cassandra.
- E quanto à margarida negra, acredito mesmo que ela a tenha visto. Até porque, estou de testemunha: antes de sair de casa, não tomamos nada mais do que a velha Poção Mágica Para Todos Os Efeitos... – arrematou Carmenilla, acompanhando a galhofa, e fazendo com que todos caíssem na gargalhada.

Uma das coisas que os bruxos aprendiam desde cedo era: manter o bom humor. Sabiam que não adiantava se preocupar com algo que ainda não tinha tomado forma; e que a preocupação, nesses casos, não passava de uma forma de ansiedade; portanto, algo totalmente inútil – que significava tão somente a perda de uma preciosa energia que poderia ser muito melhor aproveitada mais tarde.
- De fato, tudo leva a crer que a antiga Profecia está para se realizar – num tom que não deixava dúvidas quanto à gravidade da questão, falou Bercimella, pegando o grupo de surpresa. – Por isso, a primeira providência a ser tomada é: – e bateu duas vezes com a varinha de condão no pequeno pires azul que sustentava a xícara de chá de Cassandra – Chá de jasmim!

Mal terminou a frase, treze lindos pares de xícaras de chá com seus pires, nas mais lindas cores, surgiram na Floresta, flutuando em fila indiana, até chegarem às mãos de cada um dos presentes, naquela pequena roda de amigos. Uma chaleira, correndo atrás, apressada e esbaforida, foi servindo, naquelas, um fumegante líquido cor de prata.
E um açucareiro, escoltando-a, ia espargindo açúcar, como quem esparge confete em dia de festa.

- Quer saber? Aposto que tudo é coisa de Tresloucado, abobalhado!... – declarou Dom Gastão, saindo de cena em três pulos: um pequenino, um normal e um gigante.

Dali em diante, com a tensão já relaxada, dedicaram-se finalmente ao que mais adoravam: às danças! E, até de manhãzinha, a clareira foi só animação, com os bailarinos se esbaldando ao som do roqüanrol!

sexta-feira, 30 de abril de 2010

5) A faxina

Uma casa, todo mundo sabe, e até uma casa de bruxa, de vez em quando precisa de uma boa limpeza. Então, depois de vestir-se apropriadamente para a ocasião – isto é, com uma roupa bem confortável ou alegre fantasia, que combinaria muito bem com o seu estado de espírito –, Bercimella começava a “função”. E a diversão corria solta: principiando pela vassoura – uma companheira e tanto! – que, a uma simples ordem de sua chefe, dava uma cambalhota, seguida por três giros sobre si mesma e, lampeira e feliz, seguia em disparada pela casa, comandando uma pequena fila; na qual seguiam, impávidos e concentrados, outros objetos de limpeza, como o espanador, o esfregão, o balde, e uns três panos coloridos. Além de dois ou três passarinhos entusiasmados que, de pura felicidade, saiam acompanhando o cortejo e a folia.
Tapetes e cortinas levantavam-se, abrindo-se e dando passagem. Encurvando-se, recurvando-se, mal a vassoura chegasse perto. Por vezes, algum instrumento musical, ou até o rádio, resolvia, por si mesmo, começar uma música, para dar mais animação. Um instrumento tocar sozinho não era algo incomum – pelo menos na casa de uma feiticeira –, mas... um rádio! – sem fio ou eletricidade – era, sem sombra de dúvida, uma magia e tanto!!! Possível apenas para bruxas ou bruxos que tivessem freqüentado a Escola ULTRA Superior de Feitiçaria.

Acontecia também que, estando Bercimella muito ocupada com algum animal doente, ferido, ou para dar cria, na cozinha, sob a batuta de Dona Colher de Pau: tigelas, ovos, farinhas, garfos, açúcar, peneira, pratos, manteiga, confeitos, ovos, nozes, passas, baunilha, chocolates, frutas, e toda a sorte de deliciosos alimentos, se uniam, fundiam, mesclavam-se e embaralhavam-se; reunindo-se ou separando-se, para dar forma e conteúdo aos mais saborosos bolos e quitutes que se possa imaginar.
E uma mesa linda e muito bem posta, como uma singela homenagem de todos que haviam participado nos trabalhos, aguardava a laboriosa amiga no final de mais um dia.


Capítulo II – As Festas

1) Pequenas e grandes festas

Em certas épocas não muito raras, e em outras, nem tão freqüentes; em geral durante a noite, a alegre bruxa era vista saindo em sua vassoura; a qual, invariavelmente, iniciava seu vôo com uma espiral de três círculos para cima, seguido de avanço acelerado, parada brusca (mais parecendo uma pausa dramática e teatral!), e rápido impulso na direção contrária de onde tinha vindo. Uma evolução que era uma espécie de marca registrada.
E que, para encanto dos pequenos animais que assistiam à pirotécnica decolagem, enquanto subia, ia ainda despejando cascatas de estrelinhas verdes e prateadas, fazendo lembrar festas juninas.
Sempre um sinal de incontida felicidade, pois a moça, dali a pouco, estaria se divertindo imensamente na companhia de seus amigos engraçados e inteligentes.

Freqüentemente – ao Norte, Sul, Leste ou Oeste – havia uma festa, que começava quando chegava o primeiro convidado, e só terminava quando todos os assuntos tivessem sido conversados, todas as receitas mágicas experimentadas e todas as danças dançadas.

Às vezes, alta madrugada e com a animação a todo vapor, Bercimella se obrigava a dar uma paradinha para recarregar as baterias. A energia que circulara fora tanta, que seus pés não conseguiam parar de criar coreografias. Já os pensamentos e idéias, davam a impressão de que sairiam voando de sua cabeça. Recostava-se então no tronco de alguma árvore decana, como o Carvalho Mestre e, com um amigo assim tão sábio, ia pondo os assuntos em dia.
Dali a pouco, estava de novo leve... como um filhote de darmango dançando roqüanrol*. Hora de voltar para a fuzarca!
Nesse tempo, era moda bruxa o uso de meias listradas nas cores laranja, verde-limão, vermelho e pink. E os cabelos, também pintados nessas cores, faziam um contraste muito divertido com os usuais trajes pretos-básicos da turma – preferidos para dias de festa.

* - dança antiga e tradicional, muito apreciada por bruxos.

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Essas, eram as pequenas festas, e aconteciam cada vez que os bruxos tinham vontade de se reunir – o que quer dizer... quase sempre. Porém, duas vezes por ano ocorriam as festas grandes e especiais: o Solstício de Inverno e o Solstício de Verão – marcando dois importantes momentos na Roda do Ano. E que, depois da bruxa mudar-se para a Floresta, seguidamente tinham lugar à volta de sua casa.

Para esses encontros, vinha gente de tudo quanto era lugar: bruxos, animais e elementais dos quatro cantos da Terra; índios de várias tribos; o povo do fundo do mar; de perto ou de muito longe, pois apareciam até seres de Sírius e de Órion.
Conforme o gosto e a natureza, alguns convidados acampavam pelas cercanias: no campo ou na Floresta; e os mais chegados, na própria casa da amiga.

Bruxos e não bruxos, além de reforçarem laços de amizade, trocavam informações utilíssimas, tais como os ventos que estavam por vir, receitas de poções: de cura ou de encantamento; sabedorias das mais diversas, e histórias extraordinárias.
Nessas ocasiões, aparecia Dourado – o jovem e talentoso Mestre de Vassouras –, que a cada dia se destacava mais na complicada, e tradicional, Arte Vassoural; surpreendendo a todos com modelos arrojados e aerodinâmicos, e, freqüentemente, muito bonitos.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Conversa de flores num jardim encantado

No jardim propriamente dito e, além do jardim e do portão, num prado que ia até o início da Floresta, viviam as mais belas flores que se possa imaginar: campânulas, petúnias, gerânios, madressilvas, colombinas, cravos, maravilhas, zínias, belas-emílias, jasmins, hortênsias e anêmonas; que, além de proporcionarem surpresa e prazer aos olhos de quem passava, faziam com que, aguçando um pouco os ouvidos, o passante pudesse ouvir um diálogo um tanto incomum:
- Diga-me, prezada Petúnia, você tem visto recentemente o Beija-Flor Anacleto Malaquias? – perguntava uma jovem Zínia. – Ele ficou de me trazer um pouco de pó de carmim de uma viagem que faria ao Oriente, e já faz um bom tempo que não o vejo por essas bandas... Estou sentindo que minhas pétalas começam a descorar...
- Será que o Sol aparecerá hoje? – espreguiçando-se, perguntava um Cravo Vermelho a uma Hortênsia Azul e gorducha, que o encarava com os olhinhos brilhando. – Preciso dar uma boa esticada em meus pecíolos... – completava o galã.
Ou...
- Por favor, Senhor Jasmim: conceda-me uma ou duas folhas de Vossa Senhoria; pretendo dar uma festa esta noite e quero servir um gostoso chá aos meus convidados – pedia uma Formiguinha ao Senhor Pé de Jasmim que, altivo e nobre, qual orgulhoso Conde, exalava boas maneiras e o seu inebriante perfume pelo lugar.
- Senhor Vento, sopre um pouquinho mais para o Oeste, pois preciso perder algumas das minhas velhas pétalas. Este penteado está meio fora de moda... – solicitava uma Rosa glamurosa.

E, do portão para dentro, mais admirado ainda ficaria o visitante, quando fosse saudado ao som de metálicos e estridentes:
- Taratará! Tará! – de um pequeno pelotão de Cipós Trombetas à esquerda, e outro de Trombetas de Pastor à direita, os quais, enfileirados como sentinelas verdes, faziam as honras da casa, anunciando a visita às trombeteadas.
O trombeteamento a todo vapor também poderia ocorrer para anunciar algum fato novo ou surpreendente que estivesse acontecendo naquele momento.

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Rente ao avarandado, que se estendia por toda a frente da casa, ficava um dos mais lindos roseirais desse mundo. Composto por magníficas Rosas Brancas de todos os tamanhos possíveis, que – lembrando faceiras e sorridentes noivas de maio – reverberavam em dias luminosos. Nas tardes frescas, eram suavemente esbatidas pelas cálidas Brisas, suas madrinhas.
Em noites de luar, as pétalas dessas Rosas brilhavam acetinadas, exalando um perfume que, mais do que deleitar, acariciava. O que não dariam os mais célebres perfumistas de Paris para descobrir seu segredo!...
A primeira muda, ali plantada, foi a herança que Bercimella recebeu de sua mãe.

3) O Tempo Mágico ou... Alguém aí acredita que as bruxas tenham berrugas no nariz?

Há quanto tempo Bercimella morava na Floresta Encantada, ninguém poderia dizer. Sabia-se apenas que mudara-se para lá muito tempo após ter concluído a Escola de Magia e depois de ter vivido na Cidade das Luzes.
O Tempo Mágico é um Tempo diferente, que não pode ser contado por relógio nem calendário. Não teria como se saber, por exemplo, quanto tempo se passou, do dia em que seu pai escreveu seu nome no Grande Livro do Vir a Ser – aquele que contém o nome de todos os bruxos que nasceram nesse mundo –, até o momento em que estes fatos aconteceram. Por conseguinte, inúteis quaisquer esforços para tentar adivinhar a idade da bela bruxa – aliás, bela não só em sua essência, como em aparência.
Com cabelos cor de chocolate – que, conforme o seu estado de espírito, emitiam reflexos de tâmaras, framboesas, limões ou ameixas; pele saudavelmente dourada pelos raios solares; e olhos, bem... quanto aos olhos, o esquerdo possuía um lindo tom de azul elétrico, e o direito... era violeta.
Curiosamente, quem estivesse conversando com ela, perceberia que, conforme o assunto descambasse para um tema alegre – com direito a risos e muita alegria –, o olho azul emergiria, tornando-se infinitamente mais brilhante e, quase que imperceptivelmente, crescendo... Já no caso de temas que exigissem reflexão e seriedade, seria o violeta que assumiria o controle, tornando-se profundo, e até retinindo certo ar de dramaticidade.
- E no caso dela ficar braba?... realmente zangada... – quis saber o esquilo Benildo, enquanto ouvia, junto a outros pequenos e atentos seres, as adoráveis histórias de Bercimella, contadas pela Coruja Bernadette, numa tarde de aula na Floresta.
- Aí, amiguinhos, os dois olhos podem lançar tantas chispas e faíscas, que vai parecer até que a mamãe de vocês está fazendo açúcar mascavo, melado e rapadura.
- Uau!!! – foi o comentário feito, com a expressão de um medo ao mesmo tempo fingido e exagerado.
“Coisa de criança” – pensou Bernadette, enquanto passava o tema de casa – caprichando numa cara ainda mais séria e compenetrada.

Bercimella possuía um porte nobre e um corpo esbelto e ágil, daqueles acostumados a aventurar-se livremente pelos caminhos da vida, a subir em árvores e a nadar em rios ou mares; um corpo cheio de força e de amor. No entanto, andava – no Tempo Comum ou normal (ou “sem graça”, para a maioria dos bruxos), entre os trezentos e sessenta e quatro e os quinhentos e quatorze anos. Alguns conhecidos, porém, juravam que ela já teria passado dos mil e cinco!
No Tempo Mágico, estaria entre os vinte cinco e os noventa e dois. Sem dúvida, uma bruxa muito jovem...

Por falar em tempo, um bom tempo depois, enquanto colhia frutos ao pé da amendoeira, numa noite muito escura, o mesmo Esquilo Benildo – agora, já um jovem Esquilo, e não mais uma criança –, ouvindo uma conversa entre as Corujas Brigitte e Bernadette, aprendeu que, um dos segredos dos bruxos para se manterem sempre jovens e saudáveis – principalmente ao chegarem perto dos trezentos anos –, era tomar chá de sálvia, no mínimo três vezes por semana. Ouviu também as Corujas dizerem que esse segredo foi aprendido há muitos e muitos anos, numa visita que alguns bruxos da antiga fizeram aos Gnomos da distante e gelada Lituânia.

Sabia-se que, quando ali chegou, a feiticeira buscava um refúgio; cansada da vida na Cidade das Luzes, queria, não só escutar os sons da Floresta, como ouvir melhor a sua voz interior.
Desde que tomara a decisão de viver junto à natureza, procurara se integrar da melhor forma possível com todos que nela viviam. E, não sendo nem planta nem animal, mas sim bruxa da cidade, teve muito o que aprender. Porém, valendo-se de todo conhecimento trazido da Escola de Magia Superior, além da imensa vontade de fazer as coisas darem certo, acabou vitoriosa. Pois, à tão almejada paz de espírito, somou o carinho dos seres que a visitavam constantemente.
Visitas, não raro, até ilustres; de seres que andavam pelos bosques, florestas, ou por galáxias inimaginavelmente distantes.

4) O Rio

Um de seus melhores amigos, e com o qual passava momentos de pura delícia e camaradagem, era o Senhor Rio Doce, que, límpido e seguro de si – como um grande bailarino – graciosamente subia e descia, ondeava e serpenteava, ora elevando-se numa curva, ora desaguando-se num baixio; sinuosamente quebrando-se, fremindo, enquanto cruzava a Floresta de Norte a Sul.
Em certos dias, movia-se com ímpeto, e Bercimella brincava então de tobogã; em outros, andava calmo, como se ondulasse de mentirinha, frisando as águas de leve; e aí, era a hora de simplesmente relaxar e aproveitar, de ficar por ali boiando, sem pensar em nada, apenas ouvindo aquele marulhinho, quer dizer, aquele riolinho – a conversa de Rio.
Quando recebia a visita de suas filhas – as Ondas –, que às vezes vinham acompanhadas pelas primas Corredeiras e, em outras, de suas netas – as Gotas Dágua –, ele ficava feliz da vida e vagava com gosto, para cá e para lá.
A bruxa mergulhava, rolando com as jovens Ondas em escorregadores aquáticos; ou atirava-se, às gargalhadas, de longos e balançantes cipós, acompanhando cardumes de peixinhos vermelhos e dourados que passavam, sentindo-se a pessoa mais venturosa do mundo. E então, no fundo do seu coração, prometia a si mesma nunca deixar que nada de ruim acontecesse àquele lugar e àqueles seres – para ela sagrados.
Nas noites de verão, principalmente nas de Lua Cheia, em que o perfume das Damas da Noite intensificava a magia do ar, uma névoa azulada pairava acima do Rio. Logo, bem de mansinho, Sereias e Ninfas Cantoras, com olhos de néon e cabelos de longuíssimos fios prateados brilhantes, com longas e esguias caudas verdes e nacaradas, iam se chegando até a superfície. E, com as filhas do Rio, formando um coral de vozes tão belas quanto hipnotizadoras.
Bercimella e Dom Gastão – que adoravam uma seresta – assistiam quietos e enlevados, deliciando-se com o gratuito e inusitado espetáculo, enquanto davam dois dedos de prosa com o Rio.
Este, no final do dia, depois de tanta agitação, espraiava-se, buscando repouso nas amigas Margens.

terça-feira, 20 de abril de 2010

2) Uma casa de feiticeira, com certeza

Justamente no lado Oeste ficava o campo das alfazemas; salpicado por violetas que nas noites de luar piscavam para a Lua – a qual, por sua vez, e por puro capricho e deleite, ia transformando-as em pequenas safiras. A intervalos, entre as flores, folhagens dos mais variados tons de verde espichavam a cabeça para apreciar o espetáculo; variações de roxos e lilases, que, lembrando um quadro de Monet, deixavam, no observador, a sensação de estar dentro de um.
Dizem ainda que, quem o fitasse por mais de dois minutos seguidos, poderia, sem perceber, começar a subir; e, subindo, subindo, pairar quase a um metro do chão. Ali, se ainda não tivesse se dado conta, invariavelmente iniciaria uma série de giros e cambalhotas em câmera lenta, para então – tal qual desatento viajante de tapete mágico – sair levitando, não raro até voando, e finalmente pousando... tão longe quanto sua imaginação o permitisse.

Aí viviam os sapos, presididos por Dom Gastão, que, além de ser o Sapo Chefe, era um grande Mago – na forma humana ou sapal –; e com quem Bercimella apreciava confabular e filosofar sobre a vida e as coisas desse mundo. Dom Gastão sabia tanto de astronomia e de música quanto de hortaliças: tempos de plantio, colheita, e sementes. Sem contar que sempre fora um tremendo intelectual. Tendo lido de tudo, jamais escondia suas preferências: Balzac, Eça de Queirós – a quem se referia como menino – e Shakespeare – esse, grande parceiro dos saudosos tempos da juventude, quando saracoteavam juntos na velha Londres.

Já do lado Leste – o lado em que nasce o Sol –, Bercimella decidiu, para homenageá-lo, plantar tudo o que fosse amarelo: batatas, abóboras, laranjas, girassóis, margaridas, milhos, mimosas, cenouras e algumas anêmonas vermelho-rosáceas, para contrastar. Nesse canto, era comum de se encontrar lagartos lagarteando ao Sol e coelhos, atracados em abóboras e cenouras. Sabiás-laranjeiras, que – como qualquer bruxo jovem sabe – adoram pés de laranjeiras, voejavam por ali.
Até o próprio Astro-Rei, não resistindo à beleza do lugar, freqüentemente era visto, em pessoa e esplendor, exibindo a sua magnífica luminosidade. Nesses dias, o local explodia numa força vital tão intensa, que até a terra palpitava, como um coração saudável, revigorado, animado e feliz.
Animais, pessoas, ou seres, que estivessem meio debilitados, ou precisando de uma energia extra –como no tempo das competições mágicas – iam então se chegando e, dentro de pouquíssimo tempo, além de apresentarem um ótimo aspecto, acabavam – em alguns casos – por irradiar algo que se assemelhava à própria luz solar.
Outros... bem... outros tornavam-se tão ardentes e apaixonados, que jamais se conformariam se não saíssem pelo mundo a distribuir sonhos de amor, abraços e beijos; como quem distribui balões e caramelos em festas de crianças. Soube-se inclusive que, tendo certa vez Sua Fulgurosa Majestade passado ali dois dias seguidos, sem querer fez com que quatro seres se tornassem incandescentes.

Ao Sul, havia um caminho que se estendia pela Floresta Encantada, e terminava – ou começava, dependendo do ponto de partida – num portãozinho que conduzia o passante, exatamente, ao jardim e à casa da bruxa. Por este caminho, que era conhecido como o “Caminho de Bercimella”, chegavam, não só os seus amigos humanos: na maioria músicos, bruxas, professores e magos – nesse caso, desvassourados, pois os que viessem de vassoura aterrissariam direto no vassouródromo dos fundos da casa; como seus amigos animais – para uma visitinha, ou em busca de ajuda.
Tal foi o caso de Centúplitas, o pequeno elefante – vindo da África com problemas de trompa entupida; ou de Rex, o Tiranossaurinho – perdido de sua mãe. Teve o insólito caso do Camelo Caramelo – que perdera não a mãe, mas as suas corcovas. Sem contar que por ali desfilavam tipos meio esquisitos, como Debret, o Et – queixando-se de que suas antenas estavam sintonizando vários canais de televisão, mas nunca o seu amor. Que, por sinal, o havia xingado de... desantenado.
Na verdade, ninguém por aquelas bandas poderia ser considerado um tipo “esquisito”, pois todos tinham penas, chifres, asas, orelhas pontudas, escamas, trompas... um olho só... ou mais de dois... antenas, chapéus pontiagudos, e as mais variadas cores, aspectos e feitios...
Todos também sabiam que, na Floresta, estariam sempre seguros e protegidos pela magia e bondade da amiga.
E, se acaso ela não ouvisse o distante uivo, gemido ou balido, de um animal ferido ou doente pedindo por socorro, outro então viria chamá-la, conduzindo-a até lá; pouco importando se o chamado acontecesse em tarde ensolarada, noite fria, ou durante uma nevasca. A necessidade falava mais alto, pois, além de sábia, a moça era também muito corajosa.

terça-feira, 7 de julho de 2009

I Parte

Capítulo I – Vida de Bruxa

1) É Fasintás...

Naquela manhã, ao pôr algumas ervas na chaleira para o chá, Bercimella não pôde deixar de acompanhar os movimentos de cinco salamandras, que se divertiam rodopiando e saltitando pelas labaredas do fogão. Contemplando-as, abstraiu-se das coisas à sua volta, concentrando-se plenamente na magia do espetáculo incandescente; faíscas, como pipocas de rubis, explodiam de vez em quando, aqui e ali.
Quando foi sacudida, daquela espécie de transe, pela batida surda de uma das abas da janela.
- É o Vento Leste... – logo percebeu – que novidades trará dessa vez? – indagou-se. Mas não prosseguiu com os pensamentos, pois, naquele instante, a porta, se escancarando, deu passagem a Dom Gastão, o Sapo – que, num só fôlego, saltou de lá para uma cadeira e desta para cima da mesa –, como se o próprio Vento o soprasse pelos calcanhares: – É Fasintás! É ele mesmo! – exclamou, empolgado. – Chegou hoje bem cedinho, com os primeiros raios de sol!

Fasintás era um Vento relativamente jovem, quer dizer, nem muito criança para andar por aí em bando de Ventos que se divertem levantando saias de senhoritas bem comportadas, ou fazendo senhores sérios e circunspetos correr atrás de seus guarda-chuvas; e nem tão velho, que só tivesse fôlego para soprar castelos de cartas. Era do tipo lépido e inconstante; fresco, frio e irrequieto; e se fazia acompanhar, na maioria das vezes, por um séqüito de Rajadas alegres e despreocupadas, que riam o tempo todo. Tão barulhentas quanto lindas – e que deixavam, minutos após ter passado, o ar repleto de partículas brilhantes e perfumadas.

Mas era do Leste, morada de Ventos fortes e destemidos; por isso, esperava-se que em breve fizesse a sua grande estréia, desencadeando uma boa reviravolta em algum lugar. Pelo menos, essa era a tradição de sua família; e uma tarefa que seus pais, tios, avós e bisavós, souberam, em outros tempos, desempenhar perfeitamente – quer dizer, ventosamente.

Todo o Povo Mágico, e principalmente Bercimella – uma das bruxas mais sabidas que já passou pela Escola de Magia Superior –, sabia que Fasintás, não só teria que cumprir seu papel familiar, como também, estava predestinado a ser um dos Grandes transformadores, ou seja, um dos Três Grandes Ventos que traria o Tempo da Meia Volta, segundo a Profecia do Livro Sagrado. Os outros dois eram: Zanzifás, que soprava do Oeste, com sua cara redonda de eterno bebezão e Ventarola, ventania altaneira, originária do Noroeste; ambos, primos de Fasintás por parte de mãe – e, ao que parece, tendo estreado recentemente em grande estilo...

- Seja o que for que ele estiver aprontando, é bom a gente se preparar – falou Bercimella, enquanto vertia o chá em duas xícaras de porcelana roxa; sentindo um arrepio que deixou os pêlos de sua nuca levemente eriçados. “Teria chegado a hora da Profecia tão esperada?” – e, sacudindo o intrometido pensamento, tomou um gole de chá.
Depois, andou até a janela – que bateu mais uma vez, como querendo chamar atenção – e ali ficou, acalmando-a e massageando-lhe os batentes; enquanto, entoando baixinho uma velha canção de ninar, deixava o olhar vagar até o Oeste da casa.

Dom Gastão refestelou-se confortavelmente na cadeira, sorvendo, com delícia, aquele que era, sem dúvida, o melhor chá da Floresta.