sexta-feira, 23 de abril de 2010

Conversa de flores num jardim encantado

No jardim propriamente dito e, além do jardim e do portão, num prado que ia até o início da Floresta, viviam as mais belas flores que se possa imaginar: campânulas, petúnias, gerânios, madressilvas, colombinas, cravos, maravilhas, zínias, belas-emílias, jasmins, hortênsias e anêmonas; que, além de proporcionarem surpresa e prazer aos olhos de quem passava, faziam com que, aguçando um pouco os ouvidos, o passante pudesse ouvir um diálogo um tanto incomum:
- Diga-me, prezada Petúnia, você tem visto recentemente o Beija-Flor Anacleto Malaquias? – perguntava uma jovem Zínia. – Ele ficou de me trazer um pouco de pó de carmim de uma viagem que faria ao Oriente, e já faz um bom tempo que não o vejo por essas bandas... Estou sentindo que minhas pétalas começam a descorar...
- Será que o Sol aparecerá hoje? – espreguiçando-se, perguntava um Cravo Vermelho a uma Hortênsia Azul e gorducha, que o encarava com os olhinhos brilhando. – Preciso dar uma boa esticada em meus pecíolos... – completava o galã.
Ou...
- Por favor, Senhor Jasmim: conceda-me uma ou duas folhas de Vossa Senhoria; pretendo dar uma festa esta noite e quero servir um gostoso chá aos meus convidados – pedia uma Formiguinha ao Senhor Pé de Jasmim que, altivo e nobre, qual orgulhoso Conde, exalava boas maneiras e o seu inebriante perfume pelo lugar.
- Senhor Vento, sopre um pouquinho mais para o Oeste, pois preciso perder algumas das minhas velhas pétalas. Este penteado está meio fora de moda... – solicitava uma Rosa glamurosa.

E, do portão para dentro, mais admirado ainda ficaria o visitante, quando fosse saudado ao som de metálicos e estridentes:
- Taratará! Tará! – de um pequeno pelotão de Cipós Trombetas à esquerda, e outro de Trombetas de Pastor à direita, os quais, enfileirados como sentinelas verdes, faziam as honras da casa, anunciando a visita às trombeteadas.
O trombeteamento a todo vapor também poderia ocorrer para anunciar algum fato novo ou surpreendente que estivesse acontecendo naquele momento.

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Rente ao avarandado, que se estendia por toda a frente da casa, ficava um dos mais lindos roseirais desse mundo. Composto por magníficas Rosas Brancas de todos os tamanhos possíveis, que – lembrando faceiras e sorridentes noivas de maio – reverberavam em dias luminosos. Nas tardes frescas, eram suavemente esbatidas pelas cálidas Brisas, suas madrinhas.
Em noites de luar, as pétalas dessas Rosas brilhavam acetinadas, exalando um perfume que, mais do que deleitar, acariciava. O que não dariam os mais célebres perfumistas de Paris para descobrir seu segredo!...
A primeira muda, ali plantada, foi a herança que Bercimella recebeu de sua mãe.

3) O Tempo Mágico ou... Alguém aí acredita que as bruxas tenham berrugas no nariz?

Há quanto tempo Bercimella morava na Floresta Encantada, ninguém poderia dizer. Sabia-se apenas que mudara-se para lá muito tempo após ter concluído a Escola de Magia e depois de ter vivido na Cidade das Luzes.
O Tempo Mágico é um Tempo diferente, que não pode ser contado por relógio nem calendário. Não teria como se saber, por exemplo, quanto tempo se passou, do dia em que seu pai escreveu seu nome no Grande Livro do Vir a Ser – aquele que contém o nome de todos os bruxos que nasceram nesse mundo –, até o momento em que estes fatos aconteceram. Por conseguinte, inúteis quaisquer esforços para tentar adivinhar a idade da bela bruxa – aliás, bela não só em sua essência, como em aparência.
Com cabelos cor de chocolate – que, conforme o seu estado de espírito, emitiam reflexos de tâmaras, framboesas, limões ou ameixas; pele saudavelmente dourada pelos raios solares; e olhos, bem... quanto aos olhos, o esquerdo possuía um lindo tom de azul elétrico, e o direito... era violeta.
Curiosamente, quem estivesse conversando com ela, perceberia que, conforme o assunto descambasse para um tema alegre – com direito a risos e muita alegria –, o olho azul emergiria, tornando-se infinitamente mais brilhante e, quase que imperceptivelmente, crescendo... Já no caso de temas que exigissem reflexão e seriedade, seria o violeta que assumiria o controle, tornando-se profundo, e até retinindo certo ar de dramaticidade.
- E no caso dela ficar braba?... realmente zangada... – quis saber o esquilo Benildo, enquanto ouvia, junto a outros pequenos e atentos seres, as adoráveis histórias de Bercimella, contadas pela Coruja Bernadette, numa tarde de aula na Floresta.
- Aí, amiguinhos, os dois olhos podem lançar tantas chispas e faíscas, que vai parecer até que a mamãe de vocês está fazendo açúcar mascavo, melado e rapadura.
- Uau!!! – foi o comentário feito, com a expressão de um medo ao mesmo tempo fingido e exagerado.
“Coisa de criança” – pensou Bernadette, enquanto passava o tema de casa – caprichando numa cara ainda mais séria e compenetrada.

Bercimella possuía um porte nobre e um corpo esbelto e ágil, daqueles acostumados a aventurar-se livremente pelos caminhos da vida, a subir em árvores e a nadar em rios ou mares; um corpo cheio de força e de amor. No entanto, andava – no Tempo Comum ou normal (ou “sem graça”, para a maioria dos bruxos), entre os trezentos e sessenta e quatro e os quinhentos e quatorze anos. Alguns conhecidos, porém, juravam que ela já teria passado dos mil e cinco!
No Tempo Mágico, estaria entre os vinte cinco e os noventa e dois. Sem dúvida, uma bruxa muito jovem...

Por falar em tempo, um bom tempo depois, enquanto colhia frutos ao pé da amendoeira, numa noite muito escura, o mesmo Esquilo Benildo – agora, já um jovem Esquilo, e não mais uma criança –, ouvindo uma conversa entre as Corujas Brigitte e Bernadette, aprendeu que, um dos segredos dos bruxos para se manterem sempre jovens e saudáveis – principalmente ao chegarem perto dos trezentos anos –, era tomar chá de sálvia, no mínimo três vezes por semana. Ouviu também as Corujas dizerem que esse segredo foi aprendido há muitos e muitos anos, numa visita que alguns bruxos da antiga fizeram aos Gnomos da distante e gelada Lituânia.

Sabia-se que, quando ali chegou, a feiticeira buscava um refúgio; cansada da vida na Cidade das Luzes, queria, não só escutar os sons da Floresta, como ouvir melhor a sua voz interior.
Desde que tomara a decisão de viver junto à natureza, procurara se integrar da melhor forma possível com todos que nela viviam. E, não sendo nem planta nem animal, mas sim bruxa da cidade, teve muito o que aprender. Porém, valendo-se de todo conhecimento trazido da Escola de Magia Superior, além da imensa vontade de fazer as coisas darem certo, acabou vitoriosa. Pois, à tão almejada paz de espírito, somou o carinho dos seres que a visitavam constantemente.
Visitas, não raro, até ilustres; de seres que andavam pelos bosques, florestas, ou por galáxias inimaginavelmente distantes.

4) O Rio

Um de seus melhores amigos, e com o qual passava momentos de pura delícia e camaradagem, era o Senhor Rio Doce, que, límpido e seguro de si – como um grande bailarino – graciosamente subia e descia, ondeava e serpenteava, ora elevando-se numa curva, ora desaguando-se num baixio; sinuosamente quebrando-se, fremindo, enquanto cruzava a Floresta de Norte a Sul.
Em certos dias, movia-se com ímpeto, e Bercimella brincava então de tobogã; em outros, andava calmo, como se ondulasse de mentirinha, frisando as águas de leve; e aí, era a hora de simplesmente relaxar e aproveitar, de ficar por ali boiando, sem pensar em nada, apenas ouvindo aquele marulhinho, quer dizer, aquele riolinho – a conversa de Rio.
Quando recebia a visita de suas filhas – as Ondas –, que às vezes vinham acompanhadas pelas primas Corredeiras e, em outras, de suas netas – as Gotas Dágua –, ele ficava feliz da vida e vagava com gosto, para cá e para lá.
A bruxa mergulhava, rolando com as jovens Ondas em escorregadores aquáticos; ou atirava-se, às gargalhadas, de longos e balançantes cipós, acompanhando cardumes de peixinhos vermelhos e dourados que passavam, sentindo-se a pessoa mais venturosa do mundo. E então, no fundo do seu coração, prometia a si mesma nunca deixar que nada de ruim acontecesse àquele lugar e àqueles seres – para ela sagrados.
Nas noites de verão, principalmente nas de Lua Cheia, em que o perfume das Damas da Noite intensificava a magia do ar, uma névoa azulada pairava acima do Rio. Logo, bem de mansinho, Sereias e Ninfas Cantoras, com olhos de néon e cabelos de longuíssimos fios prateados brilhantes, com longas e esguias caudas verdes e nacaradas, iam se chegando até a superfície. E, com as filhas do Rio, formando um coral de vozes tão belas quanto hipnotizadoras.
Bercimella e Dom Gastão – que adoravam uma seresta – assistiam quietos e enlevados, deliciando-se com o gratuito e inusitado espetáculo, enquanto davam dois dedos de prosa com o Rio.
Este, no final do dia, depois de tanta agitação, espraiava-se, buscando repouso nas amigas Margens.

Um comentário:

  1. que lindo, bercimela!
    .
    leve, solto e sentido. no melhor bom sentido. de querer viver no texto. até meu imaginário se soltou.
    .
    bj

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